Muitas coisas chamam minha atenção no carnaval. Sempre admirei o envolvimento popular, a ginga, o samba e a descontração. Em algumas escolas de samba, o luxo e o investimento – que apesar de midiáticas - não representam a totalidade do carnaval brasileiro, com tantas manifestações comunitárias, caracterizadas por blocos, charangas e outras expressões carnavalescas.
No Aurélio, carnaval é definido como:
No mundo cristão medieval, o período de festas profanas que se iniciava, geralmente, no dia de Reis (Epifania) e se estendia até a quarta-feira de cinzas, dia em que começavam os jejuns quaresmais. [Consistia em festejos populares e em manifestações sincréticas oriundas de ritos e costumes pagãos, como as festas dionisíacas, as saturnais, as lupercais, e se caracterizava pela alegria desabrida, pela eliminação da repressão e da censura, pela liberdade de atitudes críticas e eróticas.]
Já nesta definição temos clara indicação de que o carnaval não é meramente uma festa cultural ou popular. O carnaval é escancaradamente religioso.
Neste artigo não dou ênfase às consagradas críticas dos religiosos contra o carnaval (festival da carne): licenciosidade, libertinagem sexual, bebedeiras e toda sorte de liberação das pulsões da carne, que é a natureza física ou animal do homem e que faz oposição à natureza moral ou espiritual.
Minha tese de que o carnaval é um movimento religioso é pautada em alguns indícios: tem denominações (ou agremiações) com devotos, reunião solene, doação de recursos financeiros (muitas vezes sacrificial) e reverência fervorosa. Simbolicamente tem até representante oficial, o rei momo que tem às mãos o que toda divindade territorial gostaria de ter, a chave da cidade.
Eduardo Paes, prefeito da cidade do Rio de Janeiro, reverencia o rei momo.
Sinto ciúmes da garra do passista, do canto que estufa a veia do pescoço, de quem coloca a cara na reta para defender a agremiação, da mensalidade que se paga o ano todo pela fantasia, do investimento financeiro (segundo o jornal O Globo algumas fantasias chegam a ordem de R$ 180 mil). Quem dera se a igreja brasileira fosse tão devota assim.
Além de fazer parte do calendário oficial da Igreja católica (que não aprova as práticas pecaminosas típicas deste período), muitos idolatram o carnaval. Idolatria é o que absorve nossas energias, nossos recursos, sonhos, o que tira nosso ar, que absorve nossos talentos e o que nos é mais precioso, o tempo. O carnaval é ou não um evento religioso?
Mas toda religião expressa amor pela divindade e lhe presta culto através da música. E pelas letras das músicas aprendemos muito sobre o que se está cultuando. É tolice não associarmos o carnaval com questões religiosas, identificando-o apenas como uma manifestação cultural ou populesca. Há anos estudo as letras dos enredos das escolas de samba, e sempre concluo o viés religioso desta festa. Este ano não foi diferente. Vejam alguns trechos das escolas de samba do Rio de Janeiro:
Que Deus mora na inspiração / Em páginas que se viu / O inverso se abriu, presente de irmão – Renascer de JacarepaguáMeu Rei / Senhor do Bonfim alumia / Os caminhos da Portela / Que eu guardo no meu patuá / Eu vim com a proteção dos meus guias / ... / Deixa lavar, nos altares e terreiros / Tem jarro com água de cheiro / Vou jogar flores no mar /.../ Eu venho estender o nosso manto / Aos meus santos do samba que são orixás – Portela
Ave, Bahia sagrada! /Abençoada por Oxalá! / O mar, beijando a esperança / Descansa nos braços de Iemanjá /.../ Ê, Bahia! Ê, Bahia! / Dos santos, encantos, magia / Kaô kabesilê! / Ora iê iê Oxum! – Imperatriz Leopoldinense
Voar pelas asas de um anjo / Num céu de azulejos, pedir proteção / Vida de um retirante / No sol escaldante que queima o sertão – Mocidade Independente
Na casa nagô a luz de Xangô, axé / Mina Jêje um ritual de fé / Chegou de Daomé, chegou de Abeokutá / Toda magia do vodun e do orixá – Beija-Flor
A sua alma tem negra vocação / Somos a pura raiz do samba / Bate meu peito à sua pulsação / Incorpora outra vez Kizomba e segue na missão / Tambor africano ecoando, solo feiticeiro/.../ Reina Ginga, ê matamba / Vem ver a lua de Luanda nos guiar / Reina Ginga, ê matamba / Negra de Zambi, sua terra é seu altar – Vila Isabel
Vade retro, sai assombração / Volta pra ilusão do Além / No repente do verso / O “bicho” perverso não pega ninguém / Oh meu “Padinho”, venha me abençoar / Meu santo é forte, desse “cão” vai me apartar / Quero chegar ao céu num sonho divinal / É carnaval! É carnaval! – Salgueiro
Um índio guerreiro me fez recordar / Um novo lugar, o meu braço, num novo lar / Seguindo com os “pés no chão” / “Raiz”, que se tornou religião – Mangueira
Mandacaru a flor do cerrado / Tem “xote menina” nesse arrasata-pé / Oh! Meu Padim, santo abençoado / É promessa eu pago, me guia na fé – Unidos da Tijuca
A luz que vem do céu / Brilhou no meu olhar / Trazendo a esperança / Que os anjos vêm anunciar / Lutar sem desistir / Das cinzas renascer / Eu encontrei na fé / A força para vencer / A felicidade mandou avisar / É preciso superar – Grande Rio
Me reúno numa igreja maravilhosa que há anos expressa seu amor por Jesus na avenida. Uma bateria com gente crente e jovem cantou este ano:
Passarão os céus e a terra / Mas minha palavra não passará / Fortalecido sou pela Palavra / Vazia ela jamais voltará / Não, não há / Em outro livro o que se possa achar / Promessas mil, fiéis e verdadeiras / Consolo eterno que a Bíblia dá – Missão Praia da Costa
veja a batida da bateria da Missão aqui