Quando a expressão artística funde-se com o conhecimento da
Verdade, surge o belo. A arte nada mais
é do que uma fagulha da divindade expressa de uma forma perceptível. A poesia,
a melodia, a métrica, a estética, a harmonia, enfim, o belo pertence a Deus.
Eventualmente damos um salto e alcançamos esta dimensão.
Não me lembro de ter lido o mesmo livro mais de uma vez. Mas
li quatro vezes A Volta do Filho Pródigo de Henri Nouwen. O melhor. O autor, um
padre holandês, conseguiu entrar nesta dimensão do belo, numa amálgama perfeita
que confundimos sua experiência com a Palavra revelada. E é assim que A Volta
se desenrola. Uma profusão de vivências do autor em comparação com a história
bíblica. Vida com Deus sugere compararmos os acontecimentos com as Escrituras.
A receita desta amálgama passa por uma pintura
do século XVII, uma parábola do século I e um homem do século XX em busca do
sentido da vida.
o encontro
Um encontro displicente com um poster mudou a história de
Henri. A gravura, uma réplica da pintura A
volta do filho pródigo de Rembrandt, encantou o autor. Uma viagem inusitada
a São Petersburgo, na Rússia foi a chance para visitar o Museu Hermitage, onde
por horas se inebriou com a beleza da pintura original de Rembrandt . Depois de
realizar muitas anotações e ouvir atentamente os comentários dos guias e
visitantes sobre a pintura, Henri decidiu relatar suas descobertas. Foi a
faísca necessária para que uma explosão de comparações entre os detalhes da
pintura e as nuances da parábola se harmonizassem.
Deus ama encontros, se manifesta através deles e conduz a
história por eles. Quer com pessoas ou objetos, encontros são sempre
significativos. Henri Nouwen entendeu este princípio e escreveu A Volta do
Filho Pródigo.
a identificação
Um dos pontos centrais do enredo de A Volta é a
identificação do autor com os personagens. Ora o filho mais moço, ora o filho
mais velho, ora o pai, com hábil capacidade argumentativa e refinado olhar para
as demandas humanas, somos conduzidos pelas semelhanças de cada um desses
protagonistas, suas características e seus arquétipos. Tais características são
apresentadas de tal maneira que o leitor é, irresistivelmente, levado a se
identificar com os personagens também.
o filho mais moço
Levante a mão quem se percebeu a “vida toda procurando
amigos... carente de afeição... interessado em milhares de coisas, solicitando
de um lado e de outro, atenção, louvor e afirmação.” Assim é o filho mais moço
que sai da casa do pai dando ouvido a vozes instigantes que dizem : “Vá e
mostre que você vale alguma coisa”. Com pensamentos que sugerem que “não serei amado se não conseguir
por meio de trabalho árduo e muito esforço” a aprovação que tanto anseio.
Partimos para uma terra distante todas as vezes que sentimentos como “raiva,
ressentimento, ciúme, desejo de vingança, luxúria, ganância, antagonismos e
rivalidades” povoam nosso ser.
No quadro de Rembrandt o filho volta descalço e com a cabeça
raspada, um indício de escravidão, mas o pai o recebe afetuosamente, com uma
inclinação corporal significativa, com mãos protetoras e amáveis que vendem
segurança. Mãos da paternidade sem
gênero, holística: a direita tipicamente feminina e a esquerda masculina. O masculino e o feminino em ação. Uma tentativa
de demonstrar iconograficamente o amor pleno.
o filho mais velho
O mais velho estava no campo. E é no campo que nos sentimos
amargurados, indignados com a vida quando o irmão “diferente” é paparicado. É
na árdua lida do campo que nos sentimos desprestigiados e sem reconhecimento. Este
tipo representa quando nos revoltamos e percebemos que fizemos tudo na vida de
forma correta, que atendemos religiosamente as figuras paternas – pais,
responsáveis, autoridades, professores, patrões – e mesmo assim não somos
recompensados ou reconhecidos. Uma injustiça para os mais polidos. E cheios de
justiça própria, perdemos o traquejo e travamos. Ressentidos, não dançamos nem
participamos da alegria da mesa do pai. Que chato. Somos mais velhos quando
cedemos à métrica do mundo que compara, que mede, que insiste em estatísticas.
Perdemos tempo e energia quando nos comparamos com os outros irmãos.
Na parábola o filho mais velho não está presente nem se
alegra com a volta do perdido. Ele teria algo mais importante pra fazer. Mas
Rembrandt não se prende a letra e retrata os dois irmãos na mesma obra. O mais
velho, de pé à direita, coberto com um manto vermelho como o pai, é um
espectador distante, que “olha para o pai mas sem alegria...não se aproxima,
não sorri, nem expressa boas vindas”. Neste cenário teríamos um ótimo enredo
para que Rembrandt pintasse outro quadro: A
volta do filho mais velho.
o pai
Somos pródigos quando nos encontramos em terras distantes,
onde a língua, os costumes e valores em nada se parecem com a casa do pai.
Também somos filho mais velho quando não desfrutamos da plenitude da alegria da
mesa do pai. Mas o target de nossa
caminhada deve ser assumirmos o papel de pai: que espera, concilia e ama, por
isso sofre. Que se alegra quando um filho retorna. “Alegria que não será
completa até que todos aqueles que dela tenham nascido tenham regressado a casa
e se reunido ao redor da mesa preparada para eles”. Pai é aquele que sai ao encontro de todos os
filhos, sem distinção. Sai para trazê-los para a mesa. Quando assumimos o
ministério da paternidade abrimos mão de nossos direitos e investimos no outro com
o propósito de levá-lo para uma festa badalada. Mas será que “desejo ser como o
Pai? Será que desejo ser não somente aquele que está sendo perdoado, mas também
aquele que perdoa? Não somente aquele que é bem vindo, mas aquele que acolhe? Não
unicamente aquele que é tratado com compaixão, mas aquele que tem compaixão?”
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Na pintura a apoteose se revela nas mãos do pai. É o ápice
da luz. Onde nosso olhar se detém. Mãos poderosas e carinhosas ao mesmo tempo.
Mãos quentes, que acolhem e chamam para si. Que apertam contra o peito pulsante
de tanta alegria. Que não tem medo do toque. Numa era high tech o que mais precisamos é de high touch.